quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Black Bloc, violência simbólica, politica, etc...


O Black Bloc está na rua

Nem grupo nem movimento, essa tática de guerrilha urbana anticapitalista pegou carona nos protestos atuais. Como esse fenômeno pode impactar o Brasil

por Piero Locatelli, Willian Vieira — publicado 21/08/2013 15:21

Com um martelo em punho, uma jovem de rosto coberto vestida de preto tenta destruir um Chevrolet Camaro (de 200 mil reais) em uma concessionária na Avenida Rebouças, São Paulo. Outros trajados da mesma forma, paus e pedras nas mãos, estilhaçam a parede de vidro de uma agência bancária. Uma faixa pede a saída do governador Geraldo Alckmin – o A do nome traz o símbolo de anarquia. Até chegarem as bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo da tropa de choque da PM. Sem movimento social ou partido à frente, o protesto reuniu cerca de 200 jovens, deixou lojas pichadas e 20 detidos na terça 30 de julho. Mas as cenas parecem repetidas, a ecoar os eventos que há meses têm chacoalhado o País. 

Desde o princípio das manifestações de rua no dia 6 de junho de 2013 em São Paulo contra o aumento nas passagens de ônibus, muito ficou por ser entendido. Seria a carestia a motivação dos protestos que cruzaram a barreira de 1 milhão de pessoas em todo o Brasil ou o esgotamento do sistema político? E os manifestantes, eram jovens anarquistas sem partido ou seriam necessários novos conceitos para dar conta de tantas vozes? De todas as perguntas, a que mais intrigou o País segue sem resposta clara: em meio ao mar de cabeças e punhos em riste, quem eram e o que queriam aqueles jovens de preto dispostos a destruir bancos e lojas e enfrentar a polícia com as próprias mãos? 

Black Bloc foi o termo surgido de forma confusa na imprensa nacional. Seriam jovens anarquistas anticapitalistas e antiglobalização, cujo lema passa por destruir a propriedade de grandes corporações e enfrentar a polícia. Nas capas de jornais e na boca dos âncoras televisivos, eram “a minoria baderneira” em meio a “protestos que começaram pacíficos e ordeiros”. Uma abordagem simplista diante de um fenômeno complexo. Além da ameaça à propriedade e às regras do cotidiano (como atrapalhar o trânsito e a visita oficial do papa), as atuações explicitaram a emergência de uma faceta dos movimentos sociais, de cunho anarquista e autonomista, que vão do Movimento Passe Livre (MPL) e outros coletivos até a face extrema dos encapuzados. Corretos ou não, a tática Black Bloc forçou a discussão sobre o uso da desobediência civil e da ação direta, do questionamento da mobilização pelo próprio sistema representativo. Ignorá-los não resolve a questão: o que faz um jovem se juntar a desconhecidos para atacar o patrimônio de empresas privadas sob risco de apanhar da polícia? 

“O que nos motiva é a insatisfação com o sistema político e econômico”, diz Roberto (nome fictício), 26 anos e três Black Blocs na bagagem. Ele não se identifica por razões óbvias: o que faz é ilegal. Roberto já havia ido às ruas contra a alta da tarifa, sem depredar nada. Conheceu a tática e decidiu pelas vias de fato. “Nossa sociedade vive permeada por símbolos. Participar de um Black Bloc é fazer uso deles para quebrar preconceitos, não só do alvo atacado, mas da ideia de vandalismo”, diz. As ações de depredação não seriam violentas por não serem contra pessoas. “Não há violência. Há performance.” Roberto confia em coletivos como o MPL e a Marcha das Vadias. Mas não em partidos políticos. “Não me sinto representado por partidos. Não sou a favor de democracia representativa e, sim, de uma democracia direta.”

Estudar política e quebrar bancos caminham juntos. “Não se trata de depredar pelo simples prazer de quebrar ou pichar coisas, mas de atacar o símbolo representado ali. Quando atacamos uma agência bancária, não somos ingênuos de acreditar que estamos ajudando a falir um banco, mas tornando evidente a insanidade do capitalismo. Política também se faz com as próprias mãos.” Como Roberto, milhares de jovens simpatizam com a causa e o modo de defendê-la. Juntas, as páginas do Black Bloc no Facebook receberam 30 mil “likes”. Novas surgem a cada dia. Páginas fechadas têm centenas de membros. E eles já se encontram fora da internet. Após o protesto em São Paulo no dia 11, participantes fizeram uma reunião espontânea e sem líderes. 

“O Black Bloc no Brasil veio para ficar”, afirma Pablo Ortellado, professor da USP. O pesquisador participou de protestos antiglobalização no começo dos anos 2000, quando o termo apareceu pela primeira vez no País. Hoje estuda a emergência de tais grupos. Para entendê-los, diz, é preciso voltar no tempo. A denominação surgiu na Alemanha nos anos 80, com uma pauta (ecologia radical) e uma função específica: isolar manifestantes e polícia, evitando cassetetes e agitadores infiltrados. Em 1999, manifestaram-se com violência em Seattle (EUA), quando a Organização Mundial do Comércio ali se reuniu. Protestos terminaram com pichações e depredação de empresas como Starbucks. “É quando o anarquismo dominou e o Black Bloc ficou associado ao uso da violência como ação direta, passando a ter caráter mais estético, espetacular, de intervenção urbana.” Por aqui, ambos os momentos ocorreram. “No Brasil, eles cumpriram as duas tarefas”, diz Ortellado. Num primeiro ato, protegeram os manifestantes da repressão policial, tradição alemã. Depois, sobrou o modelo americano, de ataque simbólico a grandes corporações, de espetáculo midiático. 

No fim de junho, o País viu o MPL conseguir, na base dos protestos nas ruas, baixar a tarifa de ônibus Brasil afora. Sem sua organização, os protestos continuaram com bandeiras confusas e reivindicações mais amplas – exatamente a conjuntura na qual os Black Blocs florescem. Se no começo eles tomavam carona em protestos organizados por entidades com pautas claras, pouco a pouco passaram a agir sozinhos. O protesto de terça 30, por exemplo, teve convocação apócrifa. Tais manifestações tendem a ocorrer cada vez mais desse jeito: instantâneas, acéfalas, impossíveis de controlar. Como não são uma organização, mas uma tática condicionada a contextos políticos, os Black Blocs devem surgir com mais frequência. A Copa do Mundo e as Olimpíadas, com seus espaços delimitados, gastos controversos e simbologias fartas, são alvos esperados.

O arcabouço teórico e prático paira na rede. Uma espécie de biblioteca virtual, com links para o “cânone” do Black Bloc, é replicada nas páginas dos seguidores da tática. Há o “Manifesto Black Bloc”, com máximas de caráter político, e o “Manual de Ação Direta”, espécie de treinamento a distância para a ação direita, com as seções: desobediência civil (e temas como “usando escudos”, “apanhando da polícia” e “lidando com animais”); primeiros socorros (além dos itens “gás lacrimogêneo” e “spray de pimenta”, há dicas de como lidar com queimaduras e traumatismos cranianos); e “leis, direitos e segurança” (“sendo preso”, “na delegacia” e “como deve ser a sua mochila” são os tópicos). Uma frase do manual dá o tom: “Lembre que o que eles fazem conosco todos os dias é uma violência, a desobediência violenta é uma reação a isso e, portanto, não é gratuita, como eles tentam fazer parecer”.

O surgimento de um bloco não é centralizado nem permanente. É o encontro de indivíduos com propósitos similares, mas nunca coibidos pela coletividade. “Uma formação temporária, sem identidade, na qual os indivíduos podem nem saber quem é a pessoa ao lado. Por isso é difícil controlá-los”, diz Saul Newman, professor de teoria política da Goldsmiths University, de Londres. Newman cunhou o termo pós-anarquismo para abarcar formas de resposta direta, às vezes radicais, a um Estado que interfere cada vez mais na vida de seus cidadãos. A sociedade estaria subestimando esse potencial político. “Ainda que os Black Blocs representem uma minoria no movimento anarquista, são um importante símbolo da emergência de novas formas de políticas antiautoritárias. Seus rostos cobertos se tornaram a imagem do ativismo radical contemporâneo.”

Entre os manifestantes não ligados ao Black Bloc, duas posturas ganham espaço. Por um lado, certo romantismo idealista alimentado pelas redes sociais. Pois eles agiriam como “linha de frente no enfrentamento com a polícia”, diz um blog anarquista. De outro há uma ojeriza irredutível. Em uma democracia jovem, desacostumada com manifestações difusas, qualquer protesto fora do script é temido. Durante os atos de junho, não faltaram críticas: eles só seriam válidos se pacíficos, por meio da palavra. “Mas como protestar pela palavra se é ela o suporte por meio do qual o Estado de Direito exerce violência?”, indaga o professor de teoria política Nildo Avelino, do Grupo de Estudos e Pesquisas Anarquistas da UFPB. “É preciso criar novas formas de comunicar: o Black Bloc pode ser uma delas.”

Para Avelino, o Black Bloc pode ser visto como a retomada de um tipo de ação praticada pelos anarquistas no século XIX, a propaganda pelo fato, ali para suprir a insuficiência da propaganda oral e escrita quando a prática eleitoral ganhava influência. A razão desse retorno à ação direta adviria da paulatina perda da dignidade imposta pelo capitalismo. O que explica a aceitação dos Black Blocs entre jovens na rede: o fenômeno daria voz a anseios difusos de quebrar a ordem, longe das vias institucionais. Mesma opinião tem o ativista americano John Zerzan, um dos primeiros a defender a tática nos EUA. Em 1999, a mídia associou os protestos de Seattle à sua influência. À época, o centro financeiro da cidade foi destruído. “Não será surpresa ver novas e maiores manifestações do Black Bloc no futuro”, afirma. “Demonstrações pacíficas não alcançam nada. Os protestos de 2003 contra a Guerra do Iraque foram os maiores da história e não conseguiram nada.”

Um veredicto temerário, não só por instaurar o embate físico em detrimento do debate político como regra, mas por alimentar justamente a opressão combatida. Não sendo possível separar ativistas encapuzados de policiais infiltrados e com a expansão da tática, seria possível realizar no futuro ações diretas de massa não violentas, sem embates violentos televisionados e criticados por setores amplos da sociedade? “A proeminência das táticas dos Black Blocs em insurreições recentes ao redor do mundo, inclusive no Brasil, tem alimentado o estereótipo dos anarquistas como destrutivos”, alerta Newman. “A mídia e as elites os demonizam e usam seus confrontos espetaculares para deslegitimar protestos mais amplos.” Um problema mais sério que as depredações.

A discussão não passou ao largo de quem foi às ruas em junho no Brasil, quando bases policiais e bancos foram destruídos em protestos organizados pelo MPL. O coletivo prestou ajuda jurídica a todos os presos nos protestos, independente do crime a eles imputado. Todas as prisões eram políticas e arbitrárias, diziam. “A gente tentava evitar que houvesse treta entre os manifestantes. Tão ruim quanto o que aconteceu na Paulista, quando os militantes de partidos foram atacados, era quando havia desentendimentos entre manifestantes que optam por uma tática ou outra, entre os chamados de pacíficos e os chamados de baderneiros”, diz Caio Martins, do MPL. Movimentos sociais e partidos (do PSTU à CUT), tradicionais portos para insatisfações juvenis nas ruas, mostraram-se contrários à depredação e à tática em geral. Mas, confusa diante dos novos atos, a “esquerda tradicional” evita falar do assunto. Ninguém os defende, com receio de perder apoio de setores mais conservadores, e poucos os criticam, temendo prejudicar a união da chamada voz das ruas.

Fora do País, o mesmo ocorre. Mal os Black Blocs apareceram nos protestos no Cairo, manifestantes passaram a ser presos aleatoriamente sob a acusação de “terrorismo”. O mesmo oportunismo aconteceu com o Occupy Wall Street. Em 2012, o ativista Chris Hedges os descreveu como o câncer que debelou o movimento, até então bem-sucedido em debater a tirania do capitalismo financeiro. O artigo virou um manifesto anti-Black Block. Derrick Jensen, a voz mais crítica contra a tática, concorda. “Sua antipatia contra qualquer forma de organização que iniba sua liberdade de ação faz com que eles tentem destruir até organizações lutando pela revolução social”, diz. Jensen é taxativo: para quem busca alcançar conquistas sociais concretas, a tática é um desserviço. “Atos gratuitos de destruição com espírito de carnaval não vão arranhar o capitalismo”, defende. “É preciso estratégia, objetivos. E certa ética.”



Corrupção, Estado, polícia, Black Bloc e anarquismo: 

algumas reflexões 


Desde meados de junho, vários acontecimentos ocorridos nas manifestações têm me preocupado muito, particularmente a exacerbação da violência em várias cidades. Manifestei-me sobre isso, de forma breve, no facebook, mas senti necessidade de escrever com mais vagar sobre o assunto. 

A desqualificação, feita de maneira superficial, da política e do papel do Estado, também me estimulou a escrever este texto. 

A acusação generalizada de que todos os políticos são corruptos e de que o Estado é ineficiente, serve a quem? Além de pressionar os políticos (o que é, sem dúvida, absolutamente necessário), serve, também, àqueles que defendem o Estado mínimo, sob o argumento de que os funcionários públicos são, em geral, incompetentes, relapsos, além de, em muitos casos, corruptos. Esse tipo de argumento vem, por consequência, acompanhado de outro: que a iniciativa privada, pela suas próprias características, prima pela eficiência e qualidade, supostamente garantidas pela concorrência, entre as próprias empresas e entre os seus empregados (as operadoras de telefonia são um exemplo, não?). Ironias à parte, é evidente que esse discurso não serve à grande maioria da população, que necessita efetivamente do Estado, que precisa de educação, saúde e transporte — públicos, gratuitos e de qualidade. Como se sabe, a iniciativa privada não promove a distribuição de renda e nem políticas de diminuição da desigualdade, muito ao contrário. O fato de que algumas empresas põem em prática projetos de caráter social, como parte do próprio marketing, não invalida a constatação feita acima. 

Lutar pela conquista de direitos humanos e sociais, o que inclui serviços públicos gratuitos e de qualidade, é legítimo e fundamental. Mas essa luta deve ter pautas claras, com lideranças ou, ao menos, porta-vozes, que possam negociar com os agentes públicos. Considero que a concepção de que movimentos políticos e ou sociais possam prescindir de lideranças é irreal. Na prática, por mais horizontal que seja um movimento, com efetivo debate entre seus integrantes, algumas pessoas se destacam, seja pela capacidade de argumentação, arregimentação etc. Se é assim, identificar as lideranças é necessário, inclusive para que elas respondam, efetivamente, aos interesses da maioria, ao invés de falarem pelo grupo sem representá-lo de fato. 

É evidente que o descrédito em relação aos partidos, sindicatos e movimentos sociais verticalizados levou à valorização dos chamados coletivos. Não há dúvida de que essas práticas que se pretendem horizontais são bem vindas, mas, será que isso significa o fim do surgimento de lideranças e porta-vozes? Não me parece. Não há democracia sem negociação. Assim sendo, deve existir quem negocie em nome de grupos, setores ou classes. Como fazer isso sem lideranças ou porta-vozes? Creio ser impossível. 

Os adeptos da tática Black Bloc pregam a depredação do patrimônio privado de grandes empresas (tendo como alvos preferenciais, no Brasil, as agências bancárias e concessionárias de veículos). Fazem isso como ação simbólica de ataque às corporações capitalistas e, em última instância, ao capitalismo como sistema. Além de empresas privadas, em meio à revolta, o patrimônio público também tem sido atingido, desde as manifestações de junho. Em nome de quê, em uma democracia, se depreda patrimônio público? 

Ao mesmo tempo, seus integrantes desqualificam as instituições da democracia representativa e do Estado. Conforme a afirmação de um ativista do Black Bloc (Carta Capital, n. 760): “Não me sinto representado por partidos. Não sou a favor de democracia representativa e, sim, de democracia direta”. É de se perguntar se a tática Black Bloc é compatível com a democracia, ainda que qualificada de “direta”! O anonimato e os rostos cobertos contribuem para a democracia? Como distinguir, nesse mar de pessoas de preto, ativistas anti-capitalismo de policiais infiltrados e ou militantes fascistas e neonazistas? E o que dizer do extremismo de jovens que negam qualquer forma de representação política? Sem diálogo e negociação, não há democracia. 

É isso o que queremos, o fim da democracia representativa? E o que colocar no lugar? As concepções anarquistas são, em geral, muito atraentes para aqueles que valorizam a democracia radical (no sentido original da palavra, relativo a raiz) e a justiça social, no enfrentamento ao capitalismo e suas iniquidades. Mas, historicamente, desde o século XIX, as experiências anarquistas foram localizadas e, de modo geral, transitórias. Em sociedades complexas como as que vivemos, democracia “direta” e anarquismo são inviáveis. A desqualificação da democracia representativa não é o caminho, e sim o seu aperfeiçoamento, com a ampliação da participação política e da transparência pública. 

O ataque indiscriminado à política, aos políticos, aos partidos, aos sindicatos e centrais sindicais pode aproximar os adeptos da tática Black Bloc a extremistas de direita. E não é à toa, também, que certas correntes anarquistas — que, além de negar o Estado, pregam a completa liberdade individual — aproximam-se, nesse tema, de vertentes ultraliberais, mesmo que tenham posições radicalmente opostas no que se refere ao capitalismo e à propriedade privada. Ou seja, há um individualismo ou um autoritarismo latentes em movimentos que rejeitam a negociação política. E a concepção de “bloco” também tem um viés autoritário. Bloco é uma massa compacta. É possível distinguir nela a multiplicidade de ideias e as divergências que existem em partidos e movimentos sociais democráticos, a despeito da maior ou menor verticalidade? Entre os adeptos do Black Bloc, como se pode constatar nos vários sites do “movimento”, predomina o rechaço intolerante às formas de ação política que pregam o diálogo. Usei aspas porque os próprios participantes do Black Bloc não se consideram integrantes de um movimento e sim, adeptos de uma tática de ação urbana anti-capitalista e anti-globalização. 

Em uma democracia, justifica-se o uso da violência como tática política? Seus adeptos argumentam que se defendem da ação repressora da polícia, a “mão pesada do Estado”. Entretanto, como é fácil constatar, muitas de suas ações não são defensivas. Penso que, ao contrário, o uso da violência como tática política só reforça as crenças e o poder dos que querem limitar, ameaçar ou destruir a democracia. Cresce o número de vozes — na polícia, na “grande” mídia e na sociedade (basta ler os comentários na internet e conversar com pessoas nas ruas) — que defendem o endurecimento da polícia contra os “baderneiros” e “vândalos”. 

A agressão a policiais, pelo simples fato de serem policiais, e a jornalistas de empresas oligopolistas da mídia, pelo simples fato de trabalharem nelas, são atitudes intolerantes, além de covardes. Uma coisa é a legítima defesa, outra é o ataque sem motivação concreta. Alguém, de fato, abriria mão da polícia? Conseguiríamos viver em uma sociedade sem policiais? Defendo a luta por uma mudança conceitual e estrutural da polícia, que vise a construção de uma nova polícia, desmilitarizada e respeitada pela população, que seja sua protetora e não seu algoz. E isso deve valer, como todos sabem, principalmente para as favelas e periferias, onde policiais continuam a cometer atrocidades impunemente, como se ainda vivêssemos sob ditadura militar. E, claro, nem em ditaduras isso seria tolerável!

Os extremismos de jovens anarquistas, de um lado, e de jovens neofascistas e neonazistas, de outro, não contribui para o avanço da democracia, mas a coloca em risco. Não nos esqueçamos que há inúmeros exemplos, na história, de “juventudes” autoritárias (nazista, maoísta etc.) que se vêem como portadoras da verdade. O voluntarismo, tão presente na juventude, pode levar a desastres. Por outro lado, a energia juvenil é fundamental para as mudanças e avanços que as sociedades tanto necessitam.

Esse radicalismo, que se considera anarquista, não contribui, como é óbvio, para a “derrocada do capitalismo”. Basta avaliar os resultados da tática Black Bloc nas ações antiglobalização na Europa e nos Estados Unidos. Veja-se o exemplo da Espanha: depois das revoltas dos “indignados”, a direita voltou ao poder na eleições seguintes e a política econômica de “austeridade”, adotada pelos neoliberais espanhóis do Partido Popular, só aprofundou a recessão e o desemprego, principalmente entre os jovens.

Em relação aos neoliberais, vale lembrar que não é de seu interesse, em verdade, desqualificar a política em si mesma. Seu objetivo é diminuir drasticamente o papel do Estado na economia, além da redução de impostos (principalmente os que recaem sobre os negócios) e do rechaço às políticas sociais e distributivistas, consideradas “assistencialistas” e “populistas”. 

Ao mesmo tempo, as esquerdas organizadas devem fazer uma autocrítica e uma reavaliação de certas práticas. E contribuir efetivamente para a viabilização de uma reforma política e uma reforma tributária que contribuam para o desenvolvimento econômico, mas com a priorização das políticas de diminuição das desigualdades e aprofundamento dos direitos sociais. 

Nas manifestações, principalmente em junho, apareceram tanto reivindicações para a melhoria dos serviços públicos e transporte gratuito, como pela diminuição de impostos. Ora, é evidente que essa conta não fecha. Diminuição de impostos e enxugamento do Estado são pautas da direita neoliberal. Para as esquerdas, é fundamental a atuação do Estado na promoção da igualdade social. Para isso, os impostos devem ser cobrados de maneira proporcional à riqueza e à renda dos cidadãos e das empresas, algo que, como se sabe, não ocorre no Brasil. Nem mesmo o imposto sobre “grandes fortunas”, previsto na Constituição de 1988, foi regulamentado. Portanto, a questão fundamental, para as esquerdas, não é a diminuição de impostos, como defendida pela “grande” mídia e interesses capitalistas, mas uma efetiva reforma que torne o sistema tributário mais justo. 

Isso tudo quer dizer que, ao contrário do que muitos propagam, esquerda e direita existem sim e têm projetos político-econômicos incompatíveis. Para as esquerdas, a defesa da igualdade social é um ponto essencial. Para a esquerda democrática, por sua vez, essa luta pela igualdade deve ser combatida em liberdade, sem autoritarismo. A pauta da direita, por outro lado, é a liberdade dos negócios, mesmo que à custa dos interesses das maiorias e, principalmente, em detrimento dos direitos das camadas mais pobres e sofridas da população. 

E o que querem os adeptos do Black Bloc, além de enfrentar a polícia e protagonizar ações que simbolizam a “destruição do capitalismo”? Que projeto têm? Pelo que se pode ler em sites dos Black Bloc na internet, só há a rejeição radical ao capitalismo. Destruir e, depois, construir o quê no lugar? Eles não têm essa resposta. 

Mas a direita neoliberal e a direita neofascista têm projeto, ainda que só a primeira, de fato, tenha articulação e apoio de certas parcelas da sociedade para voltar ao poder, com o auxílio, meio oculto, da segunda, que é acanhada, mas perigosa. Como se sabe, historicamente, em épocas de convulsões sociais, a direita se une. E as esquerdas têm a obrigação de não se esquecer disso. 

Kátia Gerab Baggio - professora do Departamento de História da UFMG. 


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